Justiça Poética

sexta-feira, junho 02, 2006

Orides Fontela (1940-1998)


Orides existe para além dos conceitos
que a crítica exercita acerca de sua obra.
Orides É.


FALA

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)


POEMA II

Ser em espelho
fluxo detido
ante si mesmo

lucidez.


ELEGIA (I)


Mas para que serve o pássaro?
Nós o contemplamos inerte.
Nós o tocamos no mágico fulgor das penas.
De que serve o pássaro se
desnaturado o possuímos?

O que era vôo e eis
que é concreção letal e cor
paralisada, íris silente, nítido,
o que era infinito e eis
que é peso e forma, verbo fixado, lúdico

O que era pássaro e é
o objeto: jogo
de uma inocência que
o contempla e revive— criança que tateia
no pássaro um
esquema de distâncias —

mas para que serve o pássaro?

O pássaro não serve. Arrítmicas
brandas asas repousam.

domingo, maio 28, 2006

Cassiano Ricardo (1895-1974)


Amar o poema é ter o poeta
nele transubstanciado. Se ergo a voz
e digo ao silêncio a poesia que vaza
dos versos, eis o poeta ressurreto!
Por isso chamo à luz esses poemas:
para vencer a morte.
(Sandra Baldessin)



O Banquete

Em meu quarto, o silêncio,
E a lâmpada que me divide em dois.
O meu quarto é mais pobre que o de Jó:
Duas vezes eu e uma lâmpada só.

No salão do vizinho, que não me convidou,
A mesa alva, e os convivas bebendo um vinho triste.
Será Sangue de Orfeu? Lachrima Christi?

Porém, se o vinho é triste, há estrelas líquidas
Em copos altos, que cintilam, qual geométricos lírios
Erguidos no ar à hora dos delírios.

Seria eu na festa um insulto aos demais?
Algo de cômico? Uma pedra
Aos que têm no ombro uma asa?
Carvão? Quando tudo ali é brasa?

Sinto-me bem, assim não convidado,
Pois não bebo estrela nem sangue.
Sou enteado da alegria.
A tristeza é o meu pão de cada dia.

Sinto-me bem porque sou um cacto
Com folhas de silêncio.
Não troco por nenhum gole de vinho
Este meu ser noturno e submarino.

Que só me cheguem, pois,
O terrincar das taças
E o confuso gorjeio das bacantes.
Só me agrada beber rosa, em copo, à madrugada.

Ah, se soubessem todos o bem que me fizeram
Excluindo-me do banquete,
O mais lógico dos olvidos,
Ergueriam um brinde aos escolhidos!

domingo, maio 21, 2006

Anna Akhmátova (1889-1966)


Anna Akhmátova é considerada a maior poetisa
russa do século XX. Compartilho dois dos
seus poemas que mais gosto, traduzidos por
Jorge de Sena.











Como Pedra Branca


Como pedra branca no fundo do poço
dentro de mim está uma memória.
Nem quero afastá-la, nem posso:
é sofrimento e é prazer e glória.

Julgo que quem olhar-me bem de perto
dentro em meus olhos logo pode vê-la.
E ficará mais triste e pensativo
que alguém que escute uma anedota obscena.

Eu sei que os deuses metamorfoseavam
os homens em coisas sem tirar-lhes alma.
Para que o espante da tristeza dure sempre,
em coisa da memória te mudei.


Ciumento, Terno

Ciumento, terno, inquieto,
como um sol divino amava.
Matou-se o pássaro branco,
porque ao passado cantava.

Entrava ao poente em meu quarto:
"Ama-me e ri, escreve versos!"
Enterrei o alegre pássaro
além da fonte, ao pé do tronco antigo.

Prometi-lhe não chorar.
Tenho em pedra o coração.
E é como se em toda a parte
ouvisse a doce canção.


Imagem: Nathan Altman. Portrait of Anna Akhmatova. 1914. Oil on canvas. 123.5 x 103.2 cm. The Russian Museum, St. Petersburg, Russia. Captada em: http://www.abcgallery.com/A/altman/altman1.html

segunda-feira, maio 15, 2006

Hilda Hilst (1930-2004)


Livre para fracassar

O escritor e seus múltiplos vem vos dizer adeus.
Tentou na palavra o extremo-tudo
E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância
Foi velada: obscura na teia da poesia e da loucura.
A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito

Tempo-Nada na página.

Depois, transgressor metalescente de percursos
Colou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra.

Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar.
E hoje, repetindo Bataille:

"Sinto-me livre para fracassar".

terça-feira, maio 09, 2006

Gilka Machado (1893-1980)


Gilka Machado é considerada a maior
figura feminina do Simbolismo.
Em 1991, como parte das comemorações
pelo centenário do seu nascimento,
a FUNARJ promoveu a reedição
da obra Poesias Completas.

Esboço

Teus lábios inquietos
pelo meu corpo
acendiam astros...
e no corpo da mata
os pirilampos
de quando em quando
insinuavam
fosforecentes carícias...
e o corpo do silêncio estremecia,
chocalhava,
com os guizos
do cri cri osculante
dos grilos que imitavam
a música de tua boca...
e no corpo da noite
as estrelas cantavam
com a voz trêmula e rútila
de teus beijos...

domingo, maio 07, 2006

Max Martins


Max Martins, outro poeta paraense injustiçado; a beleza da sua poesia nos ilumina. Para saber mais sobre Max, visite: http://www.culturapara.com.br

Amor: a fera

Amor: a fera
no deserto ruminando
esta lava dentro do peito
dentro da pedra
dentro do ventre
amor lavra
na planura rastejando
sulcos de febre-areia
planta no teu sexo
o cacto que mastiga
o falo que carregas
sobre os ombros
como um santo
um juramento
esta serpente


Morte: a fera

Das cavernas do sono das palavras,
os lábios confortáveis de um poema lido
e já sabido
voltas

para ela - para a terra
maleável e amante. Dela
de novo te aproximas
e de novo a enlaças firme sobre o lago
do diálogo, moldas
novo destino.

Firme penetra e cresce a aproximação conjunta.
E ocupa um centro: A morte, a fera
da vida
te lambendo.

sábado, maio 06, 2006

Mário Faustino

Mário Faustino (1930-1962), poeta paraense de grande expressividade, é o meu escolhido para "inaugurar" o blogue.

Soneto II

Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal,
arcano,
impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.


 
  • Poucas e Boas da Mari